A capoeira é uma arte multidimensional, o que significa dizer que é ao mesmo
tempo dança, luta, jogo e música. Estes múltiplos aspectos se desenvolvem na roda, um
ritual criado pelos capoeiristas que encena, por intermédio da performance corporal e
rítmica, o movimento da grande roda do mundo.
Não se sabe ao certo quando e como surgiu, o fato é que a roda se desenvolveu e se
tornou expressão própria da capoeira a partir da Bahia. Atualmente, é uma manifestação
popular que se encontra disseminada nos cinco continentes, difundida pelos mestres em
suas errâncias e organizada por pessoas de diversas nacionalidades que praticam o jogo
Apesar de sua atual popularidade a capoeira nem sempre gozou da mesma simpatia
do público e nem mesmo as rodas eram a principal expressão da arte. No Rio de Janeiro do
século XIX, os capoeiristas (ou capoeiras) se reuniam em grupos conhecidos como maltas e
eram duramente perseguidos, principalmente com a abolição da escravatura e a
proclamação da República, quando o jogo foi inserido no Código Penal Brasileiro através
do decreto de 11 de outubro de 1890. De acordo com o artigo 402, se tornou crime “fazer
nas ruas e praças públicas exercícios de agilidade e destreza corporal, conhecidos pela
denominação de capoeiragem”.
Na capital baiana o jogo era mais tolerado. Um dos motivos é que não havia naquele
estado uma lei que criminalizasse sua prática, o que pode ter contribuído para o
desenvolvimento das rodas como ritual que engendra uma série de significados lúdicos,
simbólicos e mítico-religiosos.
Em Salvador, apenas nos anos 1920, o jogo, assim como os candomblés, sofreu
maior perseguição, comandada pelo temido Pedro Gordilho, mais conhecido como Pedrito,
chefe de polícia do Esquadrão da Cavalaria. No território baiano, as rodas se tornaram
famosas como lugares de “vadiação”, brincadeira e lazer. Espaços não apenas do jogo, mas
também do aprendizado, afinal, quando se joga também se aprende. Por isso alguns mestres
ainda mantêm o antigo hábito de passar lições durante o encontro na roda. Junta-se a isso
sua característica semi-religiosa, principalmente nas práticas tradicionais, intimamente
ligada à tradição de oferecer comida após a roda, momento de celebração da sociabilidade
e, muitas vezes, de oferenda aos orixás e santos católicos sincretizados pelos devotos.
Religião, comida e celebração são elementos presentes nas festas religiosas que
ocorrem em largos próximos às igrejas católicas. Nestes lugares, as rodas de capoeira se
tornaram comuns, o que mostra sua integração com o ambiente da cultura local e, ao
mesmo tempo, sua afinidade com os cultivos religiosos.
Os capoeiras antigos sempre estiveram cercados de uma mística sobrenatural.
Usavam patuás – amuletos que continham orações e os protegiam dos perigos – e eram
reconhecidos como mandingueiros. Os mandingas, ou malinquês, habitavam o reino do
Mali e foram convertidos ao islamismo no século XIII, mas permaneceram conhecidos
como detentores de crenças e tradições fetichistas associadas à feitiçaria. Por isso os patuás
também eram conhecidos como “bolsas de mandinga”.
O profano, é claro, também faz parte da roda. Os capoeiras “vadiavam” em frente aos
botequins, onde realizavam a brincadeira ao mesmo tempo em que se serviam de goles de
cachaça, muitas vezes oferecida pelo dono do estabelecimento como contrapartida pelo fato
de o jogo atrair curiosos e, conseqüentemente, fregueses para os estabelecimentos. Aos
domingos, vestiam um terno branco que chamavam de “domingueira”. Era a roupa da
missa e do passeio, guardada para esse dia especial e cuidadosamente alinhada. Com este
traje jogavam no chão de barro vermelho e nunca se sujavam. Permaneciam limpos e
elegantes como se tivessem acabado de sair de casa.
Curiosamente, a roda nem sempre acontece em forma de círculo. Nas comunidades
pobres da Bahia, os mestres costumavam erguer “currais” retangulares de madeira para a
realização das rodas sob as vistas dos que se apoiavam no cercado. Nessa época, anos 1940,
os capoeiristas já se organizavam em grupos uniformizados com camisas de times de
futebol, e atraíam não apenas os moradores das comunidades, mas também intelectuais e
artistas.
O crescente interesse de um público que não se restringia aos praticantes da arte fez
com que as rodas de capoeira também se tornassem locais de mediação, espaços espaços
onde mundos até então distantes entram em contato, estabelecem negociações e promovem
estratégias de resistência. Mestre Valdemar organizou, entre os anos 1940 e 1970, uma roda
importante na Liberdade, bairro operário de Salvador, que acontecia também cercada por
um curral de madeira e debaixo de um teto de palha. Uma arquitetura básica para o lugar
que ficou famoso como o “Barracão do mestre Valdemar”, onde se reuniam nomes
lendários da capoeiragem baiana, como Traíra, Espinho Remoso, Antônio Cabeceiro, João
Grande, e intelectuais como Carybé, Jorge Amado, Eunice Catunda, Mário Cravo e Pierre
Verger.
O mesmo acontecia nas rodas dos espaços formais da capoeira: as academias que
começaram a surgir nos anos 1930. Jorge Amado, por exemplo, também freqüentava a
escola de mestre Pastinha, principal organizador da capoeira angola. Mestre Bimba, criador
da capoeira regional, se apresentou em 1954 para o governador da Bahia, Juracy
Magalhães, e para o presidente da República, Getúlio Vargas, o qual, na ocasião, conforme
se tornou célebre, afirmou que a capoeira era o “genuíno esporte nacional do Brasil”.
Apesar dessa afirmação, as identidades nacional e africana da capoeira permanecem em
disputa, representadas por diferentes mitos de origem e dramatizadas nas rodas por meio
dos cantos, movimentos e instrumentos.
As apresentações das rodas, por atraírem um público maior, transformaram-se em
importante meio de divulgação e desmarginalização da arte. No entanto, a capoeira se
desenvolveu em espaços sociais que, embora pouco privilegiados, garantiam o ambiente
necessário a sua prática.
A área portuária, reduto de negros estivadores e pescadores, foi um dos principais
espaços de desenvolvimento da “vadiação”. O porto simboliza a ligação da capoeira com o
mar, reminiscência da travessia do Atlântico feita pelos africanos escravizados e trazidos
para o Brasil.
As antigas cidades portuárias brasileiras, como Salvador, Rio de Janeiro e Recife,
receberam grandes levas de africanos e desenvolveram uma cultura local fortemente
marcada pelas tradições negras. A capoeira, nessas cidades, possui uma história que
atravessa a época colonial, o fim do Império e Primeira República, e permanece como
manifestação cultural emblemática de seus respectivos estados.
Bahia, Rio de Janeiro e Pernambuco foram berço de capoeiras que se tornaram
míticos, mas em solo baiano ganhou importância e destaque o ofício do mestre, figura
fundamental para a realização das rodas. Detentor do saber, é ele quem articula o ritual,
mantém a tradição, transmite o ensinamento, promove recriações, invenções e atua como
principal mediador entre a arte e a sociedade formal.
O mestre de capoeira organiza a roda como espaço de uma performance que se
mantém como legado de práticas de sociedades tradicionais africanas que se enraizaram no
Brasil, se corporificaram por meio dessa luta que se dissimula em dança e que foi
fundamental para a resistência escrava no período colonial, permanecendo como importante
referência da cultura negra.
As tradições corporais africanas se desenvolveram no Brasil marcadas pelo contexto
local. A capoeira, portanto, surgiu a partir de rupturas e continuidades que se deram no
novo continente. Uma memória do corpo, perceptível na seleção e atualização das práticas
rituais, cuja complexidade se manifesta na roda de capoeira, uma forma de expressão que se
articula às muitas identidades de brasileiros e estrangeiros nos cinco continentes.
Atualmente a capoeira está vivendo um momento marcante de internacionalização e
globalização Uma nova “diáspora”, que levanta uma série de questões importantes,
envolvendo discussões sobre políticas públicas, patrimônio, identidade e tradição em um planeta marcado por uma modernização vertiginosa.
Posted by
ACAPOEIRA
| segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011 |
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