Posted by ACAPOEIRA | segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011 | 0 comentários

A capoeira é uma arte multidimensional, o que significa dizer que é ao mesmo

tempo dança, luta, jogo e música. Estes múltiplos aspectos se desenvolvem na roda, um

ritual criado pelos capoeiristas que encena, por intermédio da performance corporal e

rítmica, o movimento da grande roda do mundo.

Não se sabe ao certo quando e como surgiu, o fato é que a roda se desenvolveu e se

tornou expressão própria da capoeira a partir da Bahia. Atualmente, é uma manifestação

popular que se encontra disseminada nos cinco continentes, difundida pelos mestres em

suas errâncias e organizada por pessoas de diversas nacionalidades que praticam o jogo

Apesar de sua atual popularidade a capoeira nem sempre gozou da mesma simpatia

do público e nem mesmo as rodas eram a principal expressão da arte. No Rio de Janeiro do

século XIX, os capoeiristas (ou capoeiras) se reuniam em grupos conhecidos como maltas e

eram duramente perseguidos, principalmente com a abolição da escravatura e a

proclamação da República, quando o jogo foi inserido no Código Penal Brasileiro através

do decreto de 11 de outubro de 1890. De acordo com o artigo 402, se tornou crime “fazer

nas ruas e praças públicas exercícios de agilidade e destreza corporal, conhecidos pela

denominação de capoeiragem”.

Na capital baiana o jogo era mais tolerado. Um dos motivos é que não havia naquele

estado uma lei que criminalizasse sua prática, o que pode ter contribuído para o

desenvolvimento das rodas como ritual que engendra uma série de significados lúdicos,

simbólicos e mítico-religiosos.

Em Salvador, apenas nos anos 1920, o jogo, assim como os candomblés, sofreu

maior perseguição, comandada pelo temido Pedro Gordilho, mais conhecido como Pedrito,

chefe de polícia do Esquadrão da Cavalaria. No território baiano, as rodas se tornaram

famosas como lugares de “vadiação”, brincadeira e lazer. Espaços não apenas do jogo, mas

também do aprendizado, afinal, quando se joga também se aprende. Por isso alguns mestres

ainda mantêm o antigo hábito de passar lições durante o encontro na roda. Junta-se a isso

sua característica semi-religiosa, principalmente nas práticas tradicionais, intimamente

ligada à tradição de oferecer comida após a roda, momento de celebração da sociabilidade

e, muitas vezes, de oferenda aos orixás e santos católicos sincretizados pelos devotos.

Religião, comida e celebração são elementos presentes nas festas religiosas que

ocorrem em largos próximos às igrejas católicas. Nestes lugares, as rodas de capoeira se

tornaram comuns, o que mostra sua integração com o ambiente da cultura local e, ao

mesmo tempo, sua afinidade com os cultivos religiosos.

Os capoeiras antigos sempre estiveram cercados de uma mística sobrenatural.

Usavam patuás – amuletos que continham orações e os protegiam dos perigos – e eram

reconhecidos como mandingueiros. Os mandingas, ou malinquês, habitavam o reino do

Mali e foram convertidos ao islamismo no século XIII, mas permaneceram conhecidos

como detentores de crenças e tradições fetichistas associadas à feitiçaria. Por isso os patuás

também eram conhecidos como “bolsas de mandinga”.

O profano, é claro, também faz parte da roda. Os capoeiras “vadiavam” em frente aos

botequins, onde realizavam a brincadeira ao mesmo tempo em que se serviam de goles de

cachaça, muitas vezes oferecida pelo dono do estabelecimento como contrapartida pelo fato

de o jogo atrair curiosos e, conseqüentemente, fregueses para os estabelecimentos. Aos

domingos, vestiam um terno branco que chamavam de “domingueira”. Era a roupa da

missa e do passeio, guardada para esse dia especial e cuidadosamente alinhada. Com este

traje jogavam no chão de barro vermelho e nunca se sujavam. Permaneciam limpos e

elegantes como se tivessem acabado de sair de casa.

Curiosamente, a roda nem sempre acontece em forma de círculo. Nas comunidades

pobres da Bahia, os mestres costumavam erguer “currais” retangulares de madeira para a

realização das rodas sob as vistas dos que se apoiavam no cercado. Nessa época, anos 1940,

os capoeiristas já se organizavam em grupos uniformizados com camisas de times de

futebol, e atraíam não apenas os moradores das comunidades, mas também intelectuais e

artistas.

O crescente interesse de um público que não se restringia aos praticantes da arte fez

com que as rodas de capoeira também se tornassem locais de mediação, espaços espaços

onde mundos até então distantes entram em contato, estabelecem negociações e promovem

estratégias de resistência. Mestre Valdemar organizou, entre os anos 1940 e 1970, uma roda

importante na Liberdade, bairro operário de Salvador, que acontecia também cercada por

um curral de madeira e debaixo de um teto de palha. Uma arquitetura básica para o lugar

que ficou famoso como o “Barracão do mestre Valdemar”, onde se reuniam nomes

lendários da capoeiragem baiana, como Traíra, Espinho Remoso, Antônio Cabeceiro, João

Grande, e intelectuais como Carybé, Jorge Amado, Eunice Catunda, Mário Cravo e Pierre

Verger.

O mesmo acontecia nas rodas dos espaços formais da capoeira: as academias que

começaram a surgir nos anos 1930. Jorge Amado, por exemplo, também freqüentava a

escola de mestre Pastinha, principal organizador da capoeira angola. Mestre Bimba, criador

da capoeira regional, se apresentou em 1954 para o governador da Bahia, Juracy

Magalhães, e para o presidente da República, Getúlio Vargas, o qual, na ocasião, conforme

se tornou célebre, afirmou que a capoeira era o “genuíno esporte nacional do Brasil”.

Apesar dessa afirmação, as identidades nacional e africana da capoeira permanecem em

disputa, representadas por diferentes mitos de origem e dramatizadas nas rodas por meio

dos cantos, movimentos e instrumentos.

As apresentações das rodas, por atraírem um público maior, transformaram-se em

importante meio de divulgação e desmarginalização da arte. No entanto, a capoeira se

desenvolveu em espaços sociais que, embora pouco privilegiados, garantiam o ambiente

necessário a sua prática.

A área portuária, reduto de negros estivadores e pescadores, foi um dos principais

espaços de desenvolvimento da “vadiação”. O porto simboliza a ligação da capoeira com o

mar, reminiscência da travessia do Atlântico feita pelos africanos escravizados e trazidos

para o Brasil.

As antigas cidades portuárias brasileiras, como Salvador, Rio de Janeiro e Recife,

receberam grandes levas de africanos e desenvolveram uma cultura local fortemente

marcada pelas tradições negras. A capoeira, nessas cidades, possui uma história que

atravessa a época colonial, o fim do Império e Primeira República, e permanece como

manifestação cultural emblemática de seus respectivos estados.

Bahia, Rio de Janeiro e Pernambuco foram berço de capoeiras que se tornaram

míticos, mas em solo baiano ganhou importância e destaque o ofício do mestre, figura

fundamental para a realização das rodas. Detentor do saber, é ele quem articula o ritual,

mantém a tradição, transmite o ensinamento, promove recriações, invenções e atua como

principal mediador entre a arte e a sociedade formal.

O mestre de capoeira organiza a roda como espaço de uma performance que se

mantém como legado de práticas de sociedades tradicionais africanas que se enraizaram no

Brasil, se corporificaram por meio dessa luta que se dissimula em dança e que foi

fundamental para a resistência escrava no período colonial, permanecendo como importante

referência da cultura negra.

As tradições corporais africanas se desenvolveram no Brasil marcadas pelo contexto

local. A capoeira, portanto, surgiu a partir de rupturas e continuidades que se deram no

novo continente. Uma memória do corpo, perceptível na seleção e atualização das práticas

rituais, cuja complexidade se manifesta na roda de capoeira, uma forma de expressão que se

articula às muitas identidades de brasileiros e estrangeiros nos cinco continentes.

Atualmente a capoeira está vivendo um momento marcante de internacionalização e

globalização Uma nova “diáspora”, que levanta uma série de questões importantes,

envolvendo discussões sobre políticas públicas, patrimônio, identidade e tradição em um planeta marcado por uma modernização vertiginosa.



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